domingo, 2 de agosto de 2009

A dignidade humana

*Suziley dos Santos da Silva



1. Findaremos este século adentrando o próximo milênio sob o signo da comemoração do cinquentenário da Declaração Internacional dos Direitos Humanos. Todavia, contraditoriamente, ainda defrontamo-nos com episódios que maculam a dignidade de milhões de seres humanos. Parece que não basta apregoar os Direitos Humanos, mas faz-se necessário alicerçar tais conceitos na única dimensão que lhe assegura consistência e credibilidade, a saber, a natureza racional e livre da pessoa humana.

2. Sob esse enfoque, festivamente, tomamos conhecimento da segunda edição do precioso opúsculo intitulado “A Dignidade do Homem” da autoria de Giovanni Picco, Conde de Mirândola e de Concórdia, editado pela Sólivros desta capital. À beleza estrutural e conceitual do texto unem-se a riqueza e a perfeição estilística da tradução e das notas feitas por Luiz Feracine.

3. O tradutor,o filósofo do Pantanal como é denominado, quando do prefácio da segunda edição, aponta como causa das guerras e da miséria humana a raiz anti-filosófica que culmina na ignorância do significado autêntico acerca da dignidade humana. É por isso que o homem, hoje, vive espezinhado. Aliás, para a nossa época tem sentido a frase de Heidegger: “Época nenhuma soube menos o que é o homem do que a atual”. Isso não obstante, os tempos de hoje são especialistas na oratória a respeito de tais direitos. É a tal retórica da saliva.

4. Eis porque e em boa hora, encontramos em Picco, protótipo do jovem humanista e intelectual de sua época, o conteúdo antropológico que desde 1496 vem servindo de base para fundamentar os Direitos Humanos. Oficialmente, o livro “A Dignidade do Homem” é considerado o primeiro texto de antropologia filosófica do Ocidente. A originalidade do estudo de Picco consiste em alicerçar o conceito de dignidade na liberdade que enobrece o ser humano.

5. Sob esse aspecto, em lance de extrema beleza literária e profundidade filosófica, seja a passagem em que “a fênix dos gênios”, focaliza a liberdade como tema central para explicar o ser humano qual obra inacabada mas perfectível: “Não te fizemos nem celeste nem terreno, mortal ou imortal, de modo que assim, tu, por ti mesmo, qual modelador e escultor da própria imagem, segundo tua preferência e, por conseguinte, para tua glória, possas retratar a forma que gostarias de ostentar. Poderás descer ao nível dos seres baixos e embrutecidos; poderás, ao invés, por livre escolha da tua alma, subir aos patamares superiores, que são divinos” (in “A Dignidade do Homem”, págs. 53 e 54). Portanto, no exercício da sua liberdade, o homem decide sobre si e sua forma definitiva. Nesse sentido ele é causa de si mesmo, porém a título de criatura e de causa segunda.

6. Em sua abrangência precoce do saber, Picco, de sólida formação religiosa, soube ser um estudioso e cientista sem descurar a visão da transcendência. Ele era um pensador de profunda fé teológica e bíblica. Aliás, a sua percepção de ser humano está calcada na antropologia religiosa tal como foi explicitada pelo Magistério Oficial da Igreja no texto da constituição conciliar: “Gaudium et Spes”. Naquelas páginas, tratando do valor da pessoa humana, indicam-se os motivos mais remotos da sua dignidade e superioridade relativamente ao resto da criação.

7. Evidente que, ao destacar a dignidade do homem em nosso meio cultural, o ilustre professor da Uniderp e da Unaes, objetiva realçar uma instância suprema que ultrapassa de muito a precariedade de embasamentos feitos de mera positividade. Afinal, os “homens das ditaduras” eram todos figurados como modelos do positivismo jurídico de suas épocas. E quem teria, hoje, a coragem de engrandecer as tristes imagens que fizeram a grandeza marcial do cidadão sob os regimes de Hitler, Mussolini, Lênin e Stálin, Franco, Salazar e da ditadura militar brasileira?! Todos eles só criaram caricaturas da autêntica “dignidade humana”.
Portanto, ao alicerçar o conceito de dignidade na natureza racional e livre do homem, estamos mais do que declarando ou positivando os Direitos Humanos. Estaremos sim operacionalizando, concretamente, a efetivação dos mesmos, lançando mão das condições conceituais impostergáveis que nos predispõem favoravelmente para a erradicação de todo tipo de miséria humana.

8. Conclusão. Ocorre, aqui, uma frase do jusfilósofo alemão R. Spaemann (in “Lo Natural y lo Racional”, trad. Espanhola, Madrid, 1989): “A dignidade do homem é inviolável. Eis aí um conceito que pode ser tido como o direito humano em geral” (pág. 90). E mais na frente Spaemann acrescenta: “A idéia de dignidade humana encontra seu fundamento teórico e sua inviolabilidade em uma antologia metafísica, vale dizer, em uma filosofia do absoluto. A presença da idéia do absoluto numa sociedade é condição necessária para que seja reconhecida a incondicionalidade da dignidade do homem” (pág. 93). É como ensinava Kant: “O homem é um fim em si e nunca meio nas mãos de outros nem do poder”. Por sua vez, Miguel Reale repete: “O homem é o valor fundante de todos os valores”.

Advogada trabalhista e aluna da Esmagis.

Artigo escrito aos 01 de outubro de 1999 em Campo Grande/MS.

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